Golden Slumbers
Sentimentos complexos saem de mim em toneladas de referências, muitas vezes, incapazes de acompanhar.
É e cá estamos nós…
Esse momento me lembra muito o “velho safado”:
arranje uma grande máquina de escrever e assim como os passos que sobem e descem do lado de fora de sua janela
bata na máquina bata forte
faça disso um combate de pesos pesados
Uma das poucas coisas realmente importantes que aprendi com a terapia foi tentar lidar de forma ativa com as coisas que me incomodam e não deixar escondidas no peito. Fazia tempo que nada me doía tanto e eu não sei como escrever sobre esse assunto.
Recentemente, antes do turbilhão, li “O lugar” da Annie Ernaux e senti que ela conseguiu expressar de forma tão graciosa o que me afastava da minha família silenciosamente. Parei finalmente de me sentir culpado por não “estar” lá. Ou talvez eu tenha “passado um pincel de merda no passado”, como Marcus Kim disse a Sasha Tran.
Por escolha própria, ou como resposta traumática, eu vivo a 250km do lugar onde eu cresci. Sempre pronunciando com orgulho: “Longe o suficiente pra não ver todo dia, mas perto o suficiente pra não passar muito tempo”. Por falta de opções, ou talvez por uma teimosia aguda, ela vivia a quase 700km do lugar onde me criou. Como já de se esperar, não nos víamos muito. Não conversávamos muito. Sempre que nos falávamos era por iniciativa dela. Quem me conhece mais de perto sabe que eu tenho um problema crônico em responder mensagens.
Minha mãe era uma pessoa bastante expansiva, faladora. Era muito fácil encontrar ela em qualquer buteco tomando uma ou então em um roda de samba duvidosa. Esbanjava sorrisos, 200kg de sarcasmo a cada meia frase. No velório dela cantaram até um samba. Entre choros e risos, o coro. Andei vendo algumas fotos antigas, de festas, esses dias. Impossível achar uma foto sem um grande riso.
Eu, por estar de fora da festa, sempre soube que existia um abismo ali. Sempre senti que compartilhávamos um demônio obscuro, guardado a sete chaves. Algo que estava nas entrelinhas das frases, uma solidão… Aquele tipo de coisa que machuca na calada da noite. O sentimento de não pertencimento da realidade distorcida da vida.
Quando eu nasci, minha mãe tinha apenas 17 anos. Eu custei a entender isso. Não que isso não fosse um fato consumado e extremamente concreto. Eu custei a entender o que isso significava na existência dela. A fase do descobrimento daquilo que se é. A personalidade de uma mãe jovem é ser mãe. Hoje, com quase o dobro da ideia que ela tinha quando eu nasci, não sei se ainda entendo o significado e o peso que isso tem.
Depois que me tornei adulto, e na base de muita terapia, compreendo as ausências, “fica com o tio ai que eu já venho” e voltando com o sol já raiando. Por mais que esse comportamento ausente tenha custado a minha alma, no fundo, eu gosto de dizer que compreendo.
Nossas últimas conversas, como a maioria das outras, foram frívolas na superfície, mas com as entrelinhas pontilhadas, que ao percorrer sempre levaram ao mesmo lugar as primeiras verdades nobres: dor e sofrimento.
Nos amávamos à nossa maneira. Distantes, mas intimamente enraizados do quanto um carregava do outro.