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Blog do Dunossauro

O incentivo faz toda diferença

Essa semana eu tive uma série de conversas difíceis, das quais só tomando banho agora tive uma impressão de que todas elas foram as mesmas, só que vistas de ângulos diferentes. Mas a última teve uma frase espacial que, confesso, me fez chorar um pouco antes de dormir.

Como todo o “bum” dessa história vem dessa frase, vamos contextualizar. Eu estava conversando com a minha @ e contando um pouco de uma das piores fases da minha vida e ela disse:

“Pra mim foi bem mais fácil”

E agora eu preciso, necessariamente, dar um contexto as conversas. O problema é que toda vez que penso em falar disso eu penso “Nossa, olha que coitadinho, vítima da sociedade” com o tom mais irônico do mundo. Sempre me vem uma frase de uma banda de hardcore que eu gosto muito, chamada Lupe de Lupe, que diz: “Não sou um privilegiado que vai beber da fonte da pobreza/E depois gorfar só pra te agradar”

Eu venho de um bairro da periferia da cidade de São Paulo chamado Jd. das Palmas e de longe nunca achei lá um lugar perto de ser “perigoso”, “nossa, olha a criminalidade solta por ai” (ironia novamente). Na realidade, nunca tive muito do que reclamar. Nunca me faltou comida, sempre tive o que vestir, às vezes algumas contas atrasadas, mas de longe não considero uma condição ruim. Como é padrão, e de se esperar, minha figura, tanto paterna quanto materna, são meus avós, dado o fato de ter nascido quando minha mãe tinha 17 anos e meu pai 20. Hoje vejo que não dava pra esperar muita estrutura físico-emocional dos meus pais naquele momento. Tanto que talvez o fato que considere mais relevante na minha existência é ter 25 anos e não ter nenhum filho até hoje. (A maioria dos meus amigos de infância, os que chegaram a essa idade, não tiveram estrutura [ou “sorte”] para esperar o momento desejado pra isso). Uma outra constante um tanto quanto normal pra galera que cresceu comigo é não ter avós, pais, parentes próximos, que chegaram nem mesmo a entrar em uma (facul|universi)dade. Isso me remete a uma piada um pouco infame, mas que carrega um peso simbólico imenso, e que meu pai costuma contar:

Fiz 5 faculdades, na sexta o tijolo acabou

Nesse ambiente, de maneira geral, ninguém é incentivado a estudar. Claro, ninguém nunca diz: “Já te disse pra lagar a escola”. Alguns amigos meus largaram a escola porque precisavam trabalhar. Trabalhar pra COMER. É, eu disse que a minha situação de longe não era ruim. Alguns foram presos antes de completar o ensino médio, outros com uma estrutura um pouco melhor se formaram e tem alguns, como eu, que largaram a escola. Tudo isso começou em uma briga que arrumei por lá. Aqui cabe um parêntese pra você que é burguês e acha que uma “suspensão”, “chamar os pais” resolveria. As coisas funcionam basicamente assim. “Um dia, no alto da sua ingenuidade, você ofende alguém (claro, moleques tem boca suja, aquela que nenhum sabão resolveria), no outro dia a pessoa aparece com uns “parceiros” na saída e te dão uma surra, ou em casos mais extremos a pessoa a quem a ofensa é direciona aparece com uma arma e resolve o problema”. Felizmente, eu apanhei bastante.

Lembro que depois disso meu conhecimento das pistas de skate da cidade ficou bem maior, fora do centro “sujo” de São Paulo. Isso aconteceu no início do ano, não me lembro exatamente quando. Aquele dia talvez tenha sido um das últimas vezes que pisei em uma sala de aula “por obrigação”. Eu estava na 8ª serie e não queria mais voltar a estudar. Lembro de ter procurado algumas escolas com a minha mãe no ano seguinte até que me veio a genial ideia de “estudar longe”. Fui estudar na barra funda. Literalmente do outro lado da cidade.

Campo limpo -> Barra Funda

Claro, eu já estava perito em andar de ônibus pelo “centro”. Descobri nessa época que os horários de pico são um tanto quanto traiçoeiros. Se eu pegasse o ônibus para pinheiros as 5:10 eu chegava as 6:20 na porta da escola. Se perdesse esse e pegasse o das 5:20, eu chegava atrasado. O problema disso era o ônibus intermediário Pinheiros -> Barra funda. Nem sempre era possível entrar nesse ônibus. Tinham 15 pessoas querendo entrar nele no ponto, mas raramente 10 conseguiam e eu fiquei de fora muitas, mas MUITAS vezes. Com isso, não é preciso dizer que muitas vezes eu fiquei pro lado de fora da escola. Mas, uma coisa muito interessante que aprendi nessa escola é que também é possível pular o muro para entrar na escola, sim, você ouviu bem. ENTRAR. Eu realmente estava com vontade de entrar. Tomei incontáveis advertências, fui suspenso algumas vezes mais o ápice e talvez a coisa mais dolorosa que escutei nesse ano foi:

Se você não consegue chegar na minha aula no horário, por que você continua vindo?

Na época tinha ficado um tanto quanto magoado. Mas hoje entendo que o fato de um professor de história ter dito isso, torna as coisas um tanto quanto MAIS complicadas. Mas eu insisti um pouco mais e conheci talvez o lugar mais mágico da cidade de São Paulo pra mim, R. Amaral gurgel. Lá tem uma ladeira muito gostosa pra descer de skate e se fosse direto pro centro, pegando 1 ônibus só eu conseguia chegar mais cedo na escola indo de skate pelo centro. Fiz algumas amizades com os moradores do viaduto, conheci melhor o centro. Mas algumas críticas foram feitas a direção em relação ao fato de “levar o skate pra escola”. A alegação da diretora:

Skate é baderna e não é tolerada baderna na escola. Trate de acordar mais cedo e pegar dois ônibus

Esse foi o último dia em que fui pra aula. Mas, como ninguém podia saber disso, eu continuei indo dar uma volta de skate no centro. No meio do caminho tinha um Senai com cursos de informática. Acabei fazendo um curso de redes lá. Eu era o aluno mais jovem e mais suado da turma. A coisa mais legal é que eu entrava no prédio a hora que queria, se chegasse atrasado era um “desculpa professor” e estava tudo resolvido. No decorrer desse ano fiz 3 cursos de redes no Senai com o dinheiro que eu tinha pra almoçar e posso dizer que valeu CADA CENTAVO. Arrumei um emprego em uma “lojinha de computadores” do ex-chefe da minha mãe. E tudo estava indo bem, meu chefe sempre me cobrava para voltar pra escola. Sim, ele tinha feito faculdade, os filhos dele tinham feito faculdade. E ele disse que lá era muito legal. Mas eu nunca acreditei que a escola era um bom lugar para. Mas, mesmo assim, fui fazer supletivo. Tentei em outra escola no centro, mas acabei voltando pra uma escola próxima de casa. Meu pai entendeu a importância de voltar a estudar e pagou o supletivo pra mim, já que as escolas públicas só oferecem supletivo no período noturno. Fiz alguns amigos mais velhos, foi um momento muito legal da minha vida. Mas a história toda e motivo de contar todo esse percurso se resume a uma professora que tive nesse período. Professora Agnes. O que ela fez por mim está longe de eu conseguir explicar com palavras e pode ser que outras pessoas tenham tentado fazer isso comigo antes, mas nunca tão claramente assim. Ela era professora de matemática e depois de uma aula ela pediu pra eu ficar, que ela queria falar comigo. Não lembro exatamente o que ela disse e até hoje eu choro um pouco quando lembro disso, agora inclusive.

Ela me disse que eu era bom em matemática. Sério, ela disse que eu era bom em alguma coisa. Eu nunca tinha escutado isso na minha vida. Mas mais do que isso, ela fez a coisa mais inesperada do mundo. Ele quis me ajudar a crescer, ela queria me ensinar matemática. Ela me deu um CD com os problemas das olimpíadas de matemática e um DVD das aulas do IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). Mas ela não me deu só o material, ela me deu incentivo pra aprender aquilo. Naquele momento ela fez uma coisa que nunca tinha visto na vida. Além de dizer que eu era capaz de aprender aquilo, ela queria me ajudar a aprender aquilo. Foi uma das coisas mais bonitas que eu lembro de terem acontecido. Me deu a faca, o queijo e um abraço.

Você pode pensar que isso não é uma grande coisa. Mas quando coloquei o CD no computador foi a primeira vez que tive consciência que existia uma “consciência intelectual”. Eu tinha 16 anos, na 8ª série (do supletivo) e só nessa determinada condição eu aprendi a pensar. Eu não tinha capacidade intelectual para compreender o que era um número maior do que cabia de dinheiro na minha carteira. E tava tudo lá, naquele DVD. O infinito de Hilbert, a aritmética modular de Galois. A geometria grega. Tudo a um click do meu mouse. Depois de semanas nesse ritmo e descobri que pra aprender mais daquilo eu tinha que passar por um muro e esse muro era maior do que o infinito de Hilbert. Eu descobri que existia uma palavra que nunca tinha escutado em toda a minha vida vestibular.

O problema do muro é que embora eu tenha conhecido ele neste ano, existiam outras crianças de 16 anos que sabiam dele a 16 anos. E como você deve ter notado, a única coisa que eu sabia do que caía no vestibular, era o que tinha do DVD do IMPA. Eu não sabia mais nada, absolutamente nada sobre gramática, geografia, química, biologia …

Mas, nesse ano eu conheci outra palavra que eu não conhecia. Se o vestibular era um muro grande, tinha um muro menor que a minha professora de história me apresentou. O vestibulinho. Nesse momento eu já tinha aprendido o valor de aprender alguma coisa. E quando você passa a dar valor as coisas que você aprende, você começa a dar valor para as pessoas que ensinam. E eu contei pra todo mundo que eu conhecia que eu ia fazer essa prova, pro professores também e eles me deram a maior moral de todos os tempos. Eu aprendi 16 anos em 6 meses graças aos meus professores. E eu passei. Sério, passei. Naquela época, eu não entendia muito bem o que era relação candidato/vaga. Mas como fui estudar na ETEC do Paraisópolis. Você pode entender que não era concorrido. Mas importante é que eu estava lá e eu acho que o grande presente que recebi lá não foi a parte técnica, mas foi outro professor. Gildarcio, um exemplo de humildade, ele sabia exatamente o que era estar ali. Não na frente dos alunos dando aula, ele sabia que todo mundo tinha passado por dificuldades pra estar ali. A galera trabalhava o dia todo e ele conseguiu arrumar um micro-ondas pra gente parar de comer comida fria antes da aula. Ele sabia das coisas. Ele entendia os alunos. Lembro que um dia fui em um final de semana lá na ETEC e ele dava aulas pra cursinhos pré-vestibular abertos pra comunidade no final de semana. Eu já tinha entendido a importância de ter um professor, mas ele me ensinou a importância de ser professor:

Ter fé no outro para construir um futuro melhor

Todo o resto dessa história é tão entediante quanto a de qualquer pessoa que tenha feito faculdade. Sim, eu passei por lá também, sou aluno especial no mestrado. Mas isso também é chato de contar. Embora por lá também tenha conhecido muitos outros mágicos da educação. Muitas pessoas inspiradoras, muitas pessoas que moldam o que sou hoje, que me ensinaram a pensar diferente. Mas existe um ponto, o limiar disso, é que, se não fosse uma ajuda totalmente despretensiosa de uma mulher que tinha fé no futuro, eu não sei onde estaria hoje. Sabe, eu conheci uma infinidade de pessoas que me inspiram todos os dias. Já falei de algumas delas em outro texto. Mas se não fosse esse momento simples, essa relação de aluno/professora não seria NADA, absolutamente NADA.

Isso me faz pensar na quantidade de pessoas que vem desse cenário, ou pior do que ele. Sabe, a molecada tá na rua, muitos deles só precisam de uma força. Mas, no fundo, eles nem sabem disso. Ninguém sabe a capacidade que tem até alguém mostrar isso.

A outra conversa que tive sobre isso essa semana foi com “seniorzão branco hétero de 40” que tem duas graduações e veio tentar diminuir um estagiário das quebradas de campinas que acorda 5 da manhã pra ir ao estágio. Nem de longe acho que ele tenha noção das coisas que disse, nem da profundidade do problema. Sabe, é social. Essa gente não conhece gente que se esforça, que sai do buraco.

Então, você Mina/Mano da quebrada que tem que lidar com esse tipo de gente, toca o foda-se. Jovem, você vale muito mais do que um engomadinho vai dizer sobre você. Eu sei que a gente quer se mostrar sempre capaz, responder à altura. Mas não importa. O importante de verdade é que você esteja sempre disponível pra estender o braço e dar aquela força pra quele ser humano que precisa de um incentivo. Pra cada boçal que você encontrar na vida, pra todo obstáculo diplomático que você tiver que enfrentar, lembra de duas coisas: 1) Tem sempre alguém que valha mais a pena investir seu tempo. 2) Você já venceu.



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